quarta-feira, 27 de julho de 2016

Uma pequena reflexão sobre a agressividade!

Uma pequena reflexão sobre a agressividade!
Rosario Câmara – CRP 02/15296

Há muitos séculos atrás, em uma terra muito distante, vivia uma governanta chamada Inanna. Ela reinava sob o céu, espalhando sua luz por todo o reino. Possuía sete objetos de poder, objetos místicos que lhe conferiam a habilidade de reinar no céu e na terra, que lhe davam sabedoria, força e beleza.  Certo dia, Inana pediu ao seu companheiro que fosse até o submundo visitar sua irmã Ereshkigal e pedir para que ela lhe prestasse as honras por ser a grande governanta. No entanto, Ereshkigal reinava no submundo e ela gostaria de ver sua irmã mais uma vez e quando o companheiro de sua irmã lá chegou foi feito prisioneiro. Inana precisou descer ao submundo, mas para visitar sua irmã precisaria se desfazer dos seus objetos de poder, pois, nenhum vivo pode adentrar o reino dos mortos sem se despojar de seus bens materiais. Por sete portões, Inanna passou e em cada um deles ela deixou um de seus objetos de poder, até estar frente a frente com sua irmã. E, ao olhar de perto para aquela que há muito não via, Inanna lembrou que faziam parte de um mesmo ser. Inanna e Ereshkigal eram idênticas em sua graça, força e beleza. Contudo, enquanto uma reinava à luz do sol, outra reinava à luz da escuridão e por isso cada uma delas tinha uma sabedoria diferente. Ao se reencontraram, Inanna fez as pazes com o seu lado mais sombrio, aquele que lhe daria forças nos momentos em que a escuridão tentasse invadir o seu reino solar.

Pois bem, esta curta história utilizo para ilustrar uma dicotomia que vem ocorrendo nas pessoas ao logo dos últimos anos: bem e mal não podem conviver juntos. Estes conceitos de bom e de mau englobam também o conceito de certo e errado e todas aquelas coisas ruins que sentimentos quando não conseguimos o que queremos, ou quando somos feridos e desejamos vingança. Pois é, não tem aquele que diga que nunca sentiu raiva, desejo de vingança, inveja, ou qualquer dessas outras coisas que costumamos pôr para debaixo do tapete. O tapete da história é o submundo governado por Ereshkigal, onde toda a agressividade e ferocidade de Inanna haviam sido domadas, esquecidas e guardadas. Já o nosso tapete, bem... ele depende... depende da história que é construída na vida da pessoa e quais os caminhos que ela encontrou para lidar com sua raiva, com seus desejos de vingança, com suas frustrações. Algumas pessoas conseguem conviver com isto sem adoecerem a si mesmas, transformam em arte ou analisam o assunto e acabam elaborando e vendo o quanto de bobagem tinha ali, naqueles quereres. Outras pessoas, por sua vez, adoecem, por exemplo, perdem o controle e começam a ter reações exageradas em algumas situações, possuem pensamentos repetitivos e desejos que não conseguem mais conter, tal como um rio caudaloso em período de cheia! Ou minguam, e tornam-se tristes e opacas.

O ocidente tentou fazer do homem um ser sem perfeições, onde tudo é maravilhoso, bonito, brilhoso, sorridente e etc... Mas a vida, ela não foi feita para ser perfeita. Ela tem um lado que é feio, mal cheiroso, cruel. Mas só entendemos a importância dele, quando convivemos com ele. Quando aprendemos à aceita-lo. Pois, quando conhecemos do que somos capazes nos nossos piores momentos, podemos dosar melhor a força que utilizaremos ou o estrago que iremos querer fazer, já que às vezes é preciso fazer um estrago para se ganhar uma batalha.

Ou seja, criamos vários nomes para explicar comportamentos complicados, adoecemos o ser humano e criamos categorias diagnósticas para rotulá-los. Mas, esquecemo-nos de olhar para a forma que integramos os pares de opostos ao nosso dia a dia. Pois, a planta para poder crescer, precisa ter força, garra e vontade para abrir a casca da semente e irromper no solo, ela precisa da agressividade. Para descobrir a força que realmente temos e do que somos capazes, é necessário descer ao inferno, fazer as pazes com nosso gêmeo do mal e subir sem necessitar mais dos vários adornos que tínhamos para nos sentir fortes. Descobrimos que a força estava dentro de nós, naquilo que negávamos  existir em nós mesmos!


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Comunica... Ação...

Comunica... Ação...
Rosario Câmara

Quem de nós nunca teve problemas devido a falta de comunicação, seja por medo de se expressar ou simplesmente pensar que não vale apenas falar? Quem nunca falou uma coisa e aquele que recebeu entendeu alguma coisa bem diferente? Acredito que metade dos problemas humanos são os problemas de comunicação. Nem sempre falamos para os outros, normalmente falamos para nós mesmos e temos a certeza que seremos entendidos e, pior ainda, muitas vezes já sabemos o que os outros vão pensar e dizer... Supomos... Adivinhamos... E se todo mundo age com a "certeza" do que o outro pensou... Já viu, né?

A palavra comunicação é proveniente do Latim communicatio e tem o significado de tornar comum ou repartir. Vamos dividir a palavra: communis (público) + actio (ato) = ato de tornar público e, adivinhem, a palavra é parente de "comunhão" que significa a realização de algo em conjunto. Podemos entender, dessa forma, que ao comunicarmos algo à alguém estamos compartilhando uma ideia para que algo em conjunto possa ser realizado. Tendo isso em mente fica mais fácil compreender porque se não conseguimos passar uma mensagem clara, acabamos por ter muitas dores de cabeça.

De mal entendidos à não acontecidos, saber falar o que sente é uma habilidade social que precisa ser desenvolvida desde a infância. As crianças pequenas estão aprendendo o repertório do comportamento social com o ambiente que a cerca, no entanto, existem as emoções primárias (raiva, alegria, medo, tristeza, nojo, surpresa e amor) que invadem a criança e, na maioria das vezes, faz com que elas passem diretamente para a ação. Neste momento, cabe ao adulto e ao meio a ajuda para identificar e expressar essa emoção de forma saudável. Entender o que está acontecendo dentro de si e saber dizer aos outros isso pode ser comparado ao fato de sentir fome e pedir comida. No entanto, tendemos a embaralhar tanto emoções e sentimentos que isto não se torna tão simples. De imediato podemos pensar que dizer "estou com fome e preciso comer" não é um ato tão proibido como fazemos com a raiva. Se dizemos que estamos com raiva de alguém, o mundo caí e somos alertados e orientados a não dizer isso, pois isso faz mal ao espírito, ao corpo e tantas outras coisas que inventamos, mas o grande problema é que "não dizer", não se refere também ao "não sentir". E, o que aprendemos com isso? Não podemos expressar tudo que sentimos.

Mas, será que se aprendermos a conviver com as emoções e os sentimentos, sejam negativos ou positivos, e a expressa-los sem acusar os outros, porém simplesmente falando de algo que estamos vivenciando, como se contássemos uma experiência, e, aprendêssemos a ouvir esses relatos sem tomar como uma ofensa, será que não ficaria muito mais claro e mais fácil todas as nossas relações? Afinal, estaríamos finalmente falando o que realmente estamos pensando sem o medo da retaliação e não ficaríamos inventando quimeras que nos dizem os que os outros estão a pensar de nós.

Lembre-se não é a sinceridade escancarada da qual estamos tratando, mas sim de saber identificar e expressar o que é nosso e o que é do outro. Saber diferenciar os atos das pessoas. Atos cometidos não podem ser modificados, mas as pessoas, estás podem mudar, desde que se possa compreendê-las, aceitá-las e, incentivá-las. Portanto, como você anda falando com você mesmo e com o mundo que o cerca? Como você anda "compartilhando" as suas "ações"?

P.s.:
·         *As emoções primárias estão muito bem retratadas na animação "Divertida Mente" (2015) dos estúdios Disney-Pixar. Se ainda não assistiu, assista. Um ótimo filme para assistir com a família.

·         *Quimera é um monstro mitológico com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente.

- -Publicado inicialmente em: http://www.agendasaude.net/2016/03/comunica-acao.html.



quarta-feira, 13 de julho de 2016

Transtorno do Controle Impulsivo... Será?

Vivemos em uma sociedade que cada dia mais precisa categorizar tudo o que existe. Uma sociedade que deixa de vivenciar e de experimentar as emoções e os sentimentos, além, de claro, negar veementemente tudo aquilo que o ser humano tem de "ruim", assim digamos. No entanto, que fique claro que esta sociedade a qual me refiro é a parte ocidental do mundo, pois os orientais possuem uma filosofia de vida bastante diferente da nossa. Tendo isso em mente, comecemos a falar sobre o título deste artigo "Transtorno do Controle dos Impulsos".

Este transtorno refere-se àquelas pessoas que possuem dificuldades em pensar antes de agir e vão logo para o ato... Sabe aquelas explosões de raivas? Pois é, coisas do tipo... O transtorno não se refere apenas à raiva, mas a diversos comportamentos em que a impulsividade toma a tônica e a pessoa meio que "perde as estribeiras", não estando sob efeito de medicamentos, álcool ou outro tipo de drogas ilícitas. Simplesmente, a pessoa é tomada pela ação e acaba agindo sem pensar e as consequências são sempre as mais desastrosas possíveis. Enfim, mesmo sendo psicóloga e sabendo da necessidade de às vezes precisar ter um diagnóstico, muitas vezes prefiro pensar que não é do diagnóstico ou de uma patologia propriamente dita que se trata. Afinal de contas, por que é que este transtorno só veio aparecer nos últimos cinquenta anos, digamos? Ou seja, prefiro descartar o nome que a psiquiatria vem utilizando, pois existem várias controvérsias sobre estes diagnósticos, e lidar com o que as pessoas estão sentindo, com a experiência que está sendo vivenciada.

Pois bem, acompanhem o meu raciocínio: já pensaram em quantas vezes guardamos os nossos sentimentos e nossas "vontades" de fazer certas coisas, ou melhor, vamos para o que o senso comum diria, pensem em quantas vezes "engolimos sapos"? Conhecem a expressão, né? Pensem em quantas vezes gostariam de dizer "não", mas o medo e a culpa do que os outros vão pensar e dizer lhes impediu. Apenas, pensem na quantidade de vezes que vocês negaram àquela vontade de “matar alguém” tamanha a raiva que lhe fez, incluindo pais, filhos e parceiros (as). Pensaram? Encurtando e deixando bem simples (não que o seja): toda vez que não damos voz ao nosso lado negro, às nossas angústias, nossas dores e negamos que existe sim uma fera dentro de nós, damos oportunidade para que ela escape nos momentos em que estivermos fragilizados ou nossas defesas estejam com a guarda baixa. Aí, o lado impulsivo e sem controle aparece.



É isso que os orientais entenderam há bastante tempo: o equilíbrio entre o bem e o mal que existe em cada ser humano. Equilibrar o nosso lado negativo e positivo é dar oportunidade para que os dois lados se expressem igualmente e lembrar que pensar e falar não é fazer. Então, antes de partir ao ato, falar sobre essas "vontades" é uma forma de dar um destino mais saudável a estes sentimentos que explodem quando menos esperamos. Ou seja, não guardem tudo e esqueçam, negando que existe sim essa realidade tão terrível dentro de nós. Lembrem-se da Lei da Física que diz que uma ação corresponde a uma reação de igual força e tamanho. E, para que você não vire um monstro em momentos inoportunos, traga-o para a luz e converse com ele, apazigue-o. Se não consegue fazer sozinho, procure um psicólogo, um amigo, alguém em quem confie, mas conheça-o e faça as pazes com ele.

Publicado inicialmente em Agenda Saúde,

sábado, 9 de julho de 2016

Por uma infância com mais traquinagens!

Certa vez, quando eu era criança, li um livro que falava que gente adulta esquecia-se  do que era ser gente pequena e tendo em vista algumas coisas que ocorrem por aí, devo concordar com a pequena personagem do livro infantil*: até parece que gente adulta esquece o que é ser criança!

Pois é, os pai, hoje em dia, parecem oscilar entre ideias do que esperar de seus filhos: ora esperam coisas que estão para além da idade que eles possuem (exemplo: que crianças de 4 anos de idade saibam esperar 30 minutos pacientemente e quietinhas), ora acham que brincar com a criança é apenas sentar no chão e brincar de carrinho e boneca ou correr e pular, ora querem que as crianças continuem dependentes como bebês (que não podem fazer muita coisa sozinhos)! Nisso, as crianças vão ficando irrequietas e nervosas com confusões que não são delas, mas sim dos adultos que as cercam, que muitas vezes estão com dificuldade em encontrarem a sua própria criança interior.

Ser pai e mãe é uma tarefa de tempo integral que leva uma vida inteira, no entanto, o quanto os filhos vão requerer esses pais vai se modificar a medida que estes vão crescendo e tornando-se independentes. Ou seja, de princípio será necessário abrir mão de alguns quereres, que pouco a pouco poderão ser repensados. Maternidade e Paternidade não precisam ser prisões que enjaulam adultos. Por que não curtir praia e programa com os filhos? Ou poder deixar os filhos com avós, tios e babás, e sair em um encontro uma vez por semana ou uma vez por mês? Assim como os pais precisam de um tempo longe de seus filhos para não enlouquecerem, as crianças também adoram um tempo longe de seus pais! E na mágica da distância é possível encontrar a saudade e o valor do reencontro e de novas histórias para contar.

Para que isso possa acontecer é preciso que os pais confiem em si mesmo, nas pessoas com as quais deixam os filhos e que confiem (principalmente!) nos próprios filhos e na educação que lhes foi dada e na capacidade que eles (os filhos) tem de criar e se tornarem pessoas independentes e capazes de cuidar de si mesmas ou de comunicar-se e pedir ajuda caso necessário!

Assim, quando os pais orientam mais os filhos ao invés de proibirem, e, respeitam suas individualidades, todos vivem mais felizes! E, as crianças podem ser traquinas e pestinhas sem serem tirânicas e mal com comportadas, ou portadoras de algum transtorno psicológico e podem perguntar e questionar sem estarem ofendendo os pais e terem distúrbios do comportamento. Tudo depende de qual lente se utiliza para conviver com a criança. Pais que estão em contato com a sua, digamos, criança interior, conseguem se identificar melhor com as necessidades infantis e entender que tudo tem seu tempo e que nem tudo é maldade, cabendo aos pais ensinarem os limites e os manterem até que elas possam lidar sozinha com eles, sem se despedaçarem no processo. Pois, Como já dizia minha avó: “criança muito quieta, é criança doente”! Assim sendo, criança com muita energia, é sinal que tem saúde pra dar e vender! Então, por que adoecê-las?

*O livro em questão se chama "Se... Será, Serafina?" da Cristina Porto e impresso pela Atica Editora.
 Texto escrito em 28 de Junho  2016 para ser veiculado no Jornal Cidade em Garanhuns.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A Agressividade na Primeira Infância


Os tempos politicamente corretos e as revoluções sociais e culturais dos últimos cinquenta anos, deixaram alguns pais desesperados frente a assuntos corriqueiros quando se trata de crianças e seus comportamentos. O que quero dizer com isso é que no meio de tanta informação e dicas de como fazer, às vezes os pais parecem ficar sem saber o quê realmente podem e devem fazer. Pois bem, dentre tantos, vamos focar nos anos iniciais entre os dois e cinco anos de idade onde as crianças entram nas escolas, nas creches e passam a circular cada vez mais nos ambientes e, claro, começam a aparecer todas as “inadequações” sociais.

São comuns os encaminhamentos nesta etapa do desenvolvimento para os psicólogos, devido à agressividade que algumas crianças começam a apresentar na escola e no convívio com outras. Mordidas, puxões de cabelo e beliscões são os campeões das discórdias no grupo de mães e pais que adoram mimar os seus filhotes e se sentirem os pais com os melhores filhos do mundo! O que fazer, então, quando os filhos se tornam verdadeiros pestinhas? 

O que muitas vezes os adultos que cuidam de crianças esquecem, é que elas não nasceram sabendo o que é raiva, o que é amor, o que é controle, o que é esperar e etc. Estes pequenos detalhes do nosso cotidiano são aprendidos e apreendidos no convívio com outras pessoas e principalmente com os adultos que cuidam delas. Ou seja, muitas vezes é preciso que os adultos se lembrem de explicar para as crianças que existem outras maneiras de lidar com a raiva, que é aquela coisa quente que a gente sente quando o amiguinho não quer brincar com a gente na hora que a gente quer, por exemplo. Que a gente pode dizer, o quanto a gente fica com raiva porque o amiguinho pegou o nosso brinquedo preferido, ao invés de puxar o cabelo dele para pegar o brinquedo de volta. São pequenos detalhes e de início, elas não fazem por mal, elas apenas sentem e agem. Elas ainda não aprenderam a pensar e elaborar o que estão sentindo para dizer de forma diferente para quem estar ao redor.

Quando os adultos conseguem essa porta de diálogo e não possuem medo de sua própria agressividade, que diferentemente da violência, é necessária para todo ser humano, eles conseguem encontrar sua própria maneira de conversar com as crianças e de ajudá-las a entender o que acontece dentro delas e traduzir aquilo para o mundo de forma mais saudável. Eles com sensibilidade e amor fazem a mediação entre os desejos infantis e as normas culturais, ajudando a construir um mundo melhor, onde as pessoas se entendem e respeitam o que cada uma sente, sem negar o que há de bom e ruim no ser humano e que todo mundo um dia sente.

 Texto escrito em 15 de Junho de 2016 para ser veiculado no Jornal Cidade em Garanhuns.





sábado, 2 de julho de 2016

Tristeza... “Essa noite não”...

A cidade enlouquece em sonhos tortos 
 Na verdade nada é o que parece ser 
As pessoas enlouquecem calmamente 
Viciosamente, sem prazer
(Essa noite não, Lobão, 1989)

Vivemos atualmente em uma sociedade que nos cobra “beleza, amor e poder” basicamente 24 horas por dia o ano inteiro, mas, infelizmente, a vida é feita de imprevistos e a letra da música do final do século passado continua bastante atual. As pessoas enlouquecem calmamente com sonhos tortos e exigências de um mundo capitalista que faz cada vez menos sentido.

O que nos torna humanos é justamente a capacidade de sentir e elaborar esta vivência, mas cada vez mais o sentir é posto embaixo do tapete e os seres humanos tornam-se máquinas que vivem o dia a dia buscando algo freneticamente. Em busca do quê, exatamente?


A maior expressão da angústia 
Pode ser a depressão 
 Algo que você pressente 
 Indefinível 
 Mas não tente se matar 
Pelo menos essa noite não
(Essa noite não, Lobão, 1989)


O vazio que vai aparecendo nos momentos em que as máquinas param e é possível respirar e olhar ao redor torna-se uma angústia indescritível, que não se consegue entender ou nomear; a vida não faz sentido e perde o seu brilho. As compras desenfreadas, as festas e as bebedeiras, o sexo e o consumismo tentam desesperadamente preencher essa lacuna que fica no sentido da existência humana. Afinal de contas, em meio a tantas dores e dificuldades para conseguir aquilo que a mídia diz que é preciso ter para ser importante e amado, qual o sentido disto tudo? Qual o sentido de toda esta luta?


As cortinas transparentes não revelam 
O que é solitude, o que é solidão
 Um desejo violento bate sem querer
Pânico, vertigem, obsessão
(Essa noite não, Lobão, 1989)


Os desejos e os quereres confundem-se com o que se espera da pessoa. E, algumas vezes, acaba-se por perder os sonhos que outrora foram essenciais para se constituir como ser. Dessa forma, quando é que realmente nos defrontamos com o estar sozinho consigo mesmo em uma jornada para se conhecer e quando simplesmente estar só é aterrorizador porque iremos nos deparar com a nossa verdadeira essência e o que há de bom e ruim nela?


Tá sozinha, tá sem onda, tá com medo 
Seus fantasmas, seu enredo, sem destino
 Toda noite uma imagem diferente 
Consciente, inconsciente, desatino
(Essa noite não, Lobão, 1989)


A maior expressão da angústia, a depressão e o desejo de não mais sofrer, podem ser vivenciados de formas desastrosas, danosas à saúde física e psíquica. Ou podem ser compreendidos como uma oportunidade para se reinventar, se redescobrir. Para isso é preciso coragem para falar e mexer naquilo que foi jogado embaixo do tapete... É uma oportunidade, de dizer “Tristeza, essa noite não! Essa noite quero aprender com você”. Ela pode ser a bússola que indica o que está de errado em sua trajetória e a guia para as próximas reflexões. 

E assim, o psicólogo pode ser aquele que irá lhe acompanhar nesta jornada frente ao redescobrimento de si mesmo, sendo testemunha do desabrochar e interlocutor das reflexões que o viver e as dores, alegrias e amores trazem a todo e qualquer ser humano.



sexta-feira, 1 de abril de 2016

Dia Mundial da Conscientização do Autismo: Construindo Pontes!

Hoje em Garanhuns ocorreu novamente uma caminhada pelas principais ruas da cidade pela conscientização do Autismo, amanhã no Largo do Colunata à partir das nove horas também ocorrerá uma mobilização com entregas de panfletos e exposição de banners explicando a temática e para fechar a semana organizada pela Rennata Amorim, mãe de uma criança com Autismo, haverá uma manhã com muita diversão no Espaço Educativa no domingo. A semana vem sendo organizada pela Rennata há seis anos e cada dia mais o assunto vem ganhando mais destaque na mídia, nas redes sociais e nos consultórios, médicos, psicológicos, fonoaudiológicos, etc.. 

O Dia 02 de Abril foi escolhido em 2008 pela ONU para mobilizar todo o mundo e conscientizar a população sobre este diagnóstico que vem cada vez mais sendo dado as crianças em todo o globo. Estima-se atualmente que a cada 80 crianças, uma irá apresentar sintomas do quadro autístico. Mas, afinal de contas o que é que é uma criança Autista e o que ela faz?

De forma bem simples, uma criança que apresenta comportamentos autistas é antes de tudo uma CRIANÇA (!) e precisa ser tratada como toda e qualquer outra: aquela velha mistura de amor, carinho, atenção e limites. Depois, vem algumas peculiaridades que todo mundo tem, venhamos e convenhamos, mas que em alguns casos chamam mais a atenção do que os outros; eu costumo simplificar dizendo assim: a criança com sintomas autistas tem uma forma de ver o mundo tão intenso e tão diferente que as vezes a sua normalidade nos assusta e acabamos por acha-las cheias de esquisitices, por outro lado somos tão distraídos que fazemos tanto alarde e tanto barulho que as assustamos e elas se retraem pois sentem o mundo em outra intensidade. Ou seja, o grande problema nosso com elas é que a ponte de comunicação entre os mundos nem sempre existe e nem sempre queremos construir. O medo e o preconceito durante muito tempo falaram mais alto. 

Por isso é tão importante este momento de  mobilização e de conscientização, pois na atualidade já existem diversos tratamentos que ajudam a pessoa esquisitona que existe dentro de cada criança dita autista a construir pontes para conversar com as pessoas loucas que continuam teimando em viverem com a normalidade que elas criaram e acham que é a única possível.

Então, vamos lá! Vamos construir pontes! Todos juntos por um mundo melhor!



quarta-feira, 30 de março de 2016

Momento Poético: O Canário

O Canário
Aquiles Porto Alegre

Em um chalet pequeno e rendilhado,
tive um canário, há muito, prisioneiro;
era um pássaro alegre e endiabrado,
que não o dava a peso de dinheiro.

Quando as asas abria no poleiro,
soltava logo o mágico trinado;
e assim passava sempre o dia inteiro,
como se fosse um doido enamorado.

Uma vez, de manhã, o passarinho
espreita para a rua... Com carinho
dois pombos se beijavam no telhado.

Contra a gaiola investe, como um louco!
Geme, agoniza e morre pouco a pouco,
com o peito ferido e ensanguentado!...


  • FARACO, S.; Livro dos Bichos. Porto Alegre: L&PM, 1999, p.89

quarta-feira, 23 de março de 2016

Momento Poético: A Solha

A Solha*



Quando Nossa Senhora andava pelo mundo,
trazendo ao colo um deus, foi bater, certo dia,
à hora da preamar, a um rio muito fundo,
de barreira muito alva, e água muito sombria.

Era um risco passar. Mas a Virgem Maria,
ante o equóreo lençol todo em peixes fecundo,
quis saber, vendo perto uma solha vadia,
se o rio, na vazante, era feio e profundo.

E indagou: "Solha, dize, a maré enche ou vaza?"
Mas a solha, a zombar, por um hábito antigo,
torce a boca, e a arremeda, a pular na onda rasa.

E é daí, e em razão desse negro pecado,
que a solha começou, por severo castigo,
a rodar pelo mar, tendo a boca de um lado.


Humberto de Campos
§Miritiba - Maranhão, 1886

*Linguado

quarta-feira, 16 de março de 2016

Momento Poético: Júlio César Ato III - Cena I (fragmento)

Júlio César ( Ato III - Cena I [fragmento])

(A Morte di Cesare, 1805, de Vincenzo Camuccini)

Antônio: Oh poderoso César! Tão por baixo!
Todas as tuas glórias, as conquistas,
teus espólios e triunfos, a medida
tão pequena ficaram reduzidos?
Adeus! Não sei o que pensais, senhores,
sobre os que ainda devem perder sangue,
por ter sangue demais. Se achais preciso
que eu o derrame, hora não há melhor
do que esta em que deixou de viver César,
nem instrumento que em valor se iguale
ao de vossas espadas, ora ricas
do sangue mais precioso deste mundo.
Suplico-vos, no caso de me terdes
como suspeito, executai o intento
sem perda de um instante, enquanto as rubras
mãos ainda vos fumegam. Se eu vivesse 
mil anos, impossível fora achar-me
tão apto para morte como agora.
Nenhum lugar me agradaria tanto
para morrer, nem gênero de morte,
como junto de César, sendo eu morto
pelos maiores homens de nossa época.



(Shakespeare, W.; Tragédias: Teatro Completo; tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 205).

quinta-feira, 10 de março de 2016

Não aprendi dizer adeus

Dizer adeus atualmente é uma das coisas mais difíceis que temos que aprender a fazer, seja crianças ou adultos. A modernidade tornou os momentos de despedida um tabu tão grande que ninguém mais fala sobre ele. Vivemos como se não perdêssemos nada e não pudéssemos perder, por mais que convivamos com os mais diversos tipos de perda em nosso cotidiano. O não dito sobre as perdas faz com que cortejemo-las de forma sútil: falamos sobre elas nos jornais, nas músicas, nas histórias que contamos, nos medos que não compartilhamos, mas demonstramos com vários problemas de saúde e de apego.
 
Não nos é ensinado "dizer adeus" e quando chegamos frente a frente com o inevitável da morte - a perda que nunca terá volta em nossas vidas - ficamos meio que sem palavras, meio atordoados e tentamos evitar, segurando as lembranças do morto o máximo possível.

No entanto, é impossível continuar vivendo sem se despedir, sem abrir espaço para o novo. É preciso abandonar as lembranças e deixa-las em seu devido lugar de lembrança. É preciso abrir mão. Mas, como podemos fazer isso?

A música "não aprendi a dizer adeus" do compositor Joel Marques e imortalizada pela voz do cantor sertanejo Leonardo é uma música que nos faz refletir sobre o não saber dizer adeus e ter que dizer adeus. Ela parece ter sido escrita com o compositor ao pé de um caixão em um velório. Vejam bem se ela não imortaliza os sentimentos de despedida que antecedem o momento de enterro:


Não aprendi dizer adeus
Não sei se vou me acostumar 
Olhando assim nos olhos teus
Sei que vai ficar nos meus 
A marca desse olhar


Ouvindo a música mais atentamente é possível se imaginar em pé a um caixão, olhando pela última vez o rosto do ente querido, uma lembrança que para sempre ficará marcada na história. Os olhos que não mais brilham e respondem. Os olhos do vazio e do mistério da vida e da morte que sempre está a nos questionar como estamos vivendo.

Sutilmente, os sentimentos do ouvinte vão sendo levados para o inexplicável de perder um ente querido e ter que se despedir: "Não tenho nada pra dizer / Só o silêncio vai falar por mim".  É difícil encontrar as palavras para a despedida e, às vezes, realmente não há mais nada a se dizer.

O compositor pouco a pouco vai retratando a ideia de que está dor estará sempre com aquele que ainda vive e que ela necessita ser um tanto esquecida em prol do amor que foi construído durante a relação: "Eu sei guardar a minha dor / Apesar de tanto amor vai ser / Melhor assim". Ele fala já no fim da música sobre a aceitação da perda, apesar do amor e da dor. Ele traz um pouco de esperança de que por fim o tempo vai passar e as cicatrizes serão esquecidas:

Não aprendi dizer adeus mas
Tenho que aceitar que amores
Vem e vão são aves de Verão
Se tens que me deixar que seja
Então feliz
Não aprendi dizer adeus
Mas deixo você ir sem lágrimas
No olhar, se adeus me machucar
O inverno vai passar, e apaga a cicatriz

Esta música é uma dentre tantas outras que pode ser utilizada como estratégia de enfrentamento para enlutados. A sonoridade e a letra da música nos aproximam dos sentimentos que não conseguimos nomear e ajuda na reflexão que em certo grau todos passam pela mesma dor.

Não é tão difícil assim se despedir ou falar da morte se assim como crianças pudermos utilizar de formas lúdicas que não joguem tão "na lata" os nossos sentimentos. Quando não encontramos palavras para expressar a dor, podemos encontrar símbolos que exprimam a angústia e o sofrimento que corre por dentro. Podemos utilizar da arte para dar um novo significado a história que já não pode mais ser e encontrar uma nova história para contar. Fica a dica!

- Publicado originalmente no site da Agenda Saúde: http://www.agendasaude.net/2016/02/nao-aprendi-dizer-adeus.html

 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Mulher, mulher! Por que estás a lutar? - Uma Breve Reflexão

De ontem... no Agenda Saúde.


O dia Internacional da Mulher comemorado todo ano no dia 08 de março é basicamente um ato político de afirmação do direito da mulher, no entanto, apesar de toda a movimentação social que existe na época, tem se tornado uma data comercial, onde pequenas lembranças são entregues em prol da comemoração.

As lutas que deram origem ao dia ocorreram durante a primeira metade do século XX. Greves de operárias em busca de melhores condições de trabalho e uma igualdade de direitos perante o funcionário homem foram as chaves que legitimaram a revolução feminina e inseriram de vez as mulheres no mercado de trabalho. Os movimentos feministas continuam em busca da melhoria da qualidade de vida para diversas mulheres; nos últimos 20 anos, por exemplo, assistimos uma crescente luta contra a violência doméstica, seja verbal ou física, que infelizmente ainda cala e mata milhares de mulheres todos os anos. 

Em meio a todo este burburinho, me pego observando de longe e me pergunto se nesta busca "desenfreada" pela igualdade perante o sexo masculino,  não perdemos de vista também qual é o papel feminino nesta história toda? É muito simples: apesar das conquistas no mercado de trabalho, posições de chefia, salários igualitários (quase sempre), o que vemos na intimidade dos lares? Ainda são poucas as mulheres que ensinam seus filhos homens a ajudar em casa, lavando, passando, cozinhando. Ainda são poucas as mulheres que permitem ou conclamam seus maridos a ajudar nos afazeres domésticos. Ainda são muitas as mulheres que se submetem a três turnos de trabalho e dão conta de tudo em um mudo sacrifício de si mesmas. 

Na contra mão da evolução, cada vez mais percebo mulheres abdicando do seu lugar no mercado para encontrar um local no lar, cuidando de seus filhos, estando mais perto da família. Assim como, percebo mulheres entre seus 25 e 30 anos, investindo na carreira e preocupadas com o tic tac do relógio biológico e a pressão da sociedade para ela casar e ser mãe. Ou, quando não, estão esgotadas e cansadas, desgostosas da vida, pois dão tudo pelos outros e quase nada para si mesmas. Então, será que não está na hora de parar para pensar sobre os direitos por "Ser  Humano" que igualam as condições de trabalho, direito ao voto e tudo o mais, equilibrar novamente o masculino e o feminino buscando o complemento dos gêneros e uma vida psíquica mais saudável?


Creio que a igualdade está justamente em sermos diferentes e aprendermos a respeitar estas individualidades. Dessa forma, talvez não seja pelos direitos igualitários que devemos lutar, mas sim pelo respeito e o reconhecimento daquilo que nos faz ser quem somos. Só para pensar!

Publicado originalmente no site Agenda Saúde: http://www.agendasaude.net/2016/03/mulher-mulher-por-que-estas-lutar.html

Momento Poético: Eu Sou Mulher

Ainda em clima de comemoração pelo Dia Internacional da Mulher:

Eu Sou Mulher



Eu sou mulher
E sou espelho
Reflito os seus pesadelos
Reflito os seus anseios

Eu sou mulher
E se ferida
Na me dou por vencida
Com lágrimas nos olhos
Estanco a dor
E te perdôo
Pois sou mulher
Sou amor

Feiticeira
Donzela
Anciã
Cada qual uma estação
Cada qual uma lição

Sou mulher
E sou vida
Renasço das cinzas
Te dou apoio
Te dou o mundo
Te jogo no labirinto
Para aprenderes
Como viver
Como ser amor

Sou luz
Sou salvadora
Sou trevas
E quando sou escuridão
Sou infeliz
Por precisar
Ser o castigo
Por ter falhado
Em te ensinar
Do modo mais simples

Mas sou mulher
Sou vencedora
Sou guerreira
Se te ameaçam
Eu viro fera
E te protejo
Com minhas garras

Se me expulsas
Da tua vida
Permaneço nas sombras
Vigio os teus passos
Se caíres
Estenderei a mão
Se mesmo assim
Você me rejeitar
Do mesmo modo
Vou esperar

Um dia você irá entender
Que sou mulher
Por vencer
Por ser mulher
Que não desiste
Que não se cansa
E ama...
Apenas ama
É que sou mulher
Que revive
E te consola

Sou mulher
E sou luz
Por dar a luz
Estou em todas as faces
Em todos os lares
Sou mulher que consola
Que se redime
Que erra
Que ri
E que chora
Sou mulher
Que se seduz
Sou a mulher de todas as faces
Para todos os lares
Sou mulher
Que vive
E morre
Renasço do amor
E vivo em todas as faces
E estou em todos os lares

(Rosario Câmara; Concurso Internacional de Poesia Livre: Prêmio Celito Medeiros 2004, Organizado por Sol Vermelho. São Paulo: All Print Editora, 2004, p. 24)

quarta-feira, 2 de março de 2016

Momento Poético: Artistas em Oração

Artistas em Oração

Há tanta beleza nestes versos,
Neste fado que toca em tom dolente,
Que me vejo vibrando, de repente,
Nos fulgores sutis do Universo!

Vejo Deus aqui, em cada matiz,
Mergulho inteira nesta sinfonia,
Qual fragmento da grande "Matriz"
Que refulge luz, rima, melodia!

Que seria da vida sem a arte,
A forma mais sublime de oração,
Que agracia o "todo" e a "parte".

Junto-me a vós, em exortação,
Deixo aqui, a lágrima de quem parte,
Levando o pincel da comunhão,

Descalvado - SP
18:47
Brasil

(Fátima Irene; Concurso Internacional de Poesia Livre: Prêmio Celito Medeiros 2004, Organizado por Sol Vermelho. São Paulo: All Print Editora, 2004, p. 79)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

FILHOS ESPECIAIS, MÃES ESPECIAIS: REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA EFICIENTE.

Este artigo foi escrito em 2008, enquanto cursava a faculdade de psicologia, junto com Jessyanne Freitas, que realizava comigo um trabalho na APAE de Garanhuns com as mães das crianças especiais, e com o nosso orientador do trabalho o Professor Antônio Pereira Filho. Foi publicado originalmente no livro "Educação e Ciências: Diálogos Interdisciplinares" no ano de 2009. Espero que gostem!


FILHOS ESPECIAIS, MÃES ESPECIAIS: REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA EFICIENTE.

 Mulheres Guerreiras e Vencedoras... Mães... Mães Especiais... Com uma vida bastante especial. Esse é o relato de uma experiência que beira os dois anos na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Garanhuns – APAE Garanhuns. Um trabalho com mães especiais, na sala de espera da referida instituição, em que as mães, algumas com seus filhos e outras não, esperam o atendimento da Equipe de Estimulação Precoce ou esperam o horário do fim da aula do setor de Escolaridade. Dois grupos, um na segunda e um na terça, mulheres de várias idades, várias cidades, vários níveis sociais, ligadas por um fator em comum: uma criança especial.
         
 Alguém pode se perguntar: por que trabalhar com as mães e não com as crianças? E aí lançamos outra pergunta: como uma mãe pode cuidar de uma criança, seja ela especial ou não, se não estiver saudável física e emocionalmente? Como uma mãe estressada pode dar carinho e amor?

 Para entender tudo isso, precisamos começar pelo início de tudo, ou seja: um belo dia uma mulher descobre que está grávida, e então ela começa a dar vazão a seus sonhos e desejos. Seu sonho de além de ser mulher ser mãe começa a se realizar, pois como mãe, ela se auto-afirma como mulher. Ela, então, idealiza uma criança linda, correndo, brincando, sorrindo, falando, enfim, uma criança saudável e perfeita. Será a primeira de muitas crianças; e a mãe, o pai, e os filhos que virão serão uma família muito feliz. É um sonho que tem tudo para ser perfeito. Porém ao dar à luz uma surpresa: o médico lhe comunica que a criança que nascera é uma criança especial e que ela “nunca” será como as outras crianças.

A dor, o medo e a ignorância

Quando iniciamos o trabalho na APAE, não sabíamos muito sobre a vida dessas mães, sabíamos apenas que elas precisavam de alguns momentos para falar sobre si, para desabafar e, até mesmo passar o tempo enquanto esperam por seus filhos; tínhamos em mente apenas que era necessário apoiar, ajudar a diminuir o nível de ansiedade, ajudar a estreitar o laço com seus filhos através de técnicas como massagem e falar sobre a importância de estarem bem e cercada de uma rede social de apoio para cuidar deles. Mas o que encontramos foi dor e falta de informação.

Portanto, alguns meses depois do início do trabalho, nós sentimos necessidade de fazer um questionário para colher dados básicos dessas mães e poder ter uma ideia melhor do que poderíamos trabalhar com elas. O que encontramos? Bem, algumas foram apenas encaminhadas pelo médico e não sabem o nome da doença ou mesmo o que estão fazendo ali, apenas sabem que seus filhos precisam e por isso elas vão. Outras, foram os vizinhos, amigos e parentes que notaram que havia algo de errado e aconselharam a levar a criança ao médico, que as encaminhou a APAE. Algumas negam e apenas dizem que estão ali para a fisioterapia, para ajudar no desenvolvimento do filho, mas que ele não é especial. E ás vezes, nem o nome da doença elas conhecem.

Medo, falta de informação e a resistência, são esses três fatores que encontramos em todas as reuniões, alguns dias mais, alguns dias menos.  A instituição se preocupa com elas, mas o atendimento primordial é voltado para os seus filhos. Eles precisam de atendimento urgente, não elas. Nesse caso, trabalhar com elas durante uma hora apenas, mostra-se um tempo curto, mas, no entanto extremamente necessário.

Fazemos o que podemos, deixem-nos contar um pouco sobre uma tarde típica de reunião: chegamos entre 13h30min e 14h; ás 14hs, iniciamos o trabalho; algumas mães estão chegando, outras já estão saindo para resolver problemas, enquanto seus filhos estão na sala de aula, e algumas mães estão saindo para levar seus filhos ao profissional da equipe que irá lhe atender naquele momento, depois de uns 15min elas voltam com as crianças e daqui a uns 20 ou 30min saem novamente para atendimento; algumas vem de outra cidade, estão com fome, ou com dores de cabeça, ou cansadas e até mesmo enjoadas por conta do carro. Dessa forma numa pequena sala retangular, onde elas entram e saem a todo instante, profissionais entram para buscar crianças e saem novamente com as crianças, tentamos criar um clima grupal, onde elas possam trocar informações e verem que não estão sozinhas. Em outros dias, o horário delas não se choca com o nosso e ás vezes passamos meses sem ver uma mãe, ou elas simplesmente são desligadas da instituição por faltarem demais ou porque seus filhos recebem alta.

Acreditamos que é necessário realmente criar um tempo para elas. Um espaço delas, em que elas se sentissem a vontade para ir e falar; em que elas estivessem vinculadas ao grupo e não só a instituição. Deixem-nos explicar o porquê: em outubro de 2008 fizemos uma atividade em que as mães construíram chocalhos, com material reciclável, para os seus filhos, a reunião durou mais que uma hora, quase duas, todas as mães participaram, algumas fizeram até mais que uma e sorridentes levaram seus filhos e o chocalho para casa. Uma semana depois, o filho de uma dessas mães veio a falecer; foi atendido no pronto-socorro, mas não sobreviveu. A morte chegou assim, sem dar um aviso prévio, como acontece com quase todo mundo, mas que é algo muito mais próximo de algumas dessas mães especiais, dependendo da doença de seus filhos. E o que aconteceu? Soubemos do ocorrido por conhecer pessoas fora da instituição que trabalham no hospital, dentro dela, foi preciso perguntar e alguns funcionários nem sabiam, iriam verificar. A referida mãe apareceu na instituição quase um mês depois, ou seja, dezembro. Não participou do encontro, foi apenas se despedir das mães. E alguns dias depois na festa de encerramento do ano, pois, havia sido convidada para dar um depoimento. E nos perguntamos? Como estará ela? Uma das mães que mais tinha esperança de seu filho andar e falar, uma criança com seus dois anos... Uma mãe que agora teria que se readaptar a ser apenas uma mãe comum e não mais uma mãe especial.

Trajetórias e inspirações...
               
De qualquer forma, para escutar e trabalhar com essas mães, precisamos nos ater ao que fala Winnicott em seu livro “Conversando com os pais” (1999):

Do que as pessoas realmente gostam é que lhes seja proporcionado à compreensão dos problemas que estão enfrentando, e agrada-lhes saber adquirirem consciência das coisas que fazem intuitivamente. Sentem-se inseguras quando entregues aos seus próprios palpites, ao gênero de coisas que lhes acodem no momento crítico, quando não dispõem de tempo para refletir e considerar maduramente que atitude tomar (WINNICOTT, 1999, p. 3).

É preciso estar constantemente lembrando que errar é humano, assim como se cansar e até mesmo não ter bons sentimentos para com os seus filhos é normal (WINNICOTT, 1999).

Winnicott já fazia a mesma reflexão com a qual começamos: porque ajudar a mãe e não a criança?

Qual é a utilidade de pôr em palavras o que é incômodo em ser mãe? Eu penso que as mães são ajudadas se forem capazes de expressar suas angústias no momento em que as sentem. O ressentimento reprimido deteriora o amor que está subjacente em tudo (WINNICOTT, 1999, p. 88).

A experiência mostra que é difícil justamente falar sobre as dificuldades encontradas nesse relacionamento, mãe especial-criança especial, assim como é difícil para elas verem a si mesmas. Seus filhos tornam-se “anjos”, dão um pouco de trabalho, às vezes deixam nas doidas, mas normalmente o filho “normal” dá mais trabalho que o “especial”, o que é que há de errado com esse quadro? Elas doam todos os seus momentos para essa criança, deixam de estudar, de trabalhar, muitas vezes porque não tem ninguém para ficar com elas. Elas abdicam de todos os seus sonhos... Sonhos que um dia terão que voltar a ter. Winnicott já abordava sobre essa temática da estruturação da família em torno da criança doente e consequentemente o seu choque, pois, não apenas a mãe, mas os pais e os irmãos passam a depender do que essa criança pode ou não fazer para viverem suas vidas:

[...] o choque provocado por uma criança doente, ou deficiente, e que por uma razão ou outra não possa contribuir. Pode-se então observar como os pais e a família sofrem em consequência disso. Quando a criança não contribui, os pais têm de tomar para si uma tarefa nada natural – devem construir e manter um lar e uma atmosfera familiar apesar de não poderem contar com a ajuda daquela criança. No cumprimento dessa tarefa, há um limite além do qual não se pode esperar o bom êxito dos pais (WINNICOTT, 2005, p. 68).

É necessário que essas mães, que essa família especial, possa contar com uma rede de apoio que as ajude a construir esse lar, essa atmosfera familiar saudável, porque isso afetará bastante o desenvolvimento do seu filho especial:

Uma criança precisa sentir que é objeto de prazer e de orgulho para a sua mãe, assim como uma mãe necessita sentir uma expansão de sua própria personalidade na de seu filho: ambos precisam se sentir profundamente identificados um com o outro. Os cuidados maternos com uma criança não se prestam a um rodízio; trata-se de uma relação viva, que altera tanto a personalidade da mãe quanto a do filho. [...] a provisão de cuidados maternos não pode ser considerada em termos do número de horas por dia, e, sim, em termos do prazer que a mãe e a criança obtêm da companhia um do outro (BOWLBY, 2006, p. 69).

Além disso, é no seio dessa família que as outras crianças podem aprender a viver em uma sociedade sem preconceitos já que é a família que proporciona               “à criança sua primeira experiência de viver e trabalhar com outras pessoas em uma comunidade” (NOLTE, 2003, p. 87).  Com isso, tanto o filho especial como os filhos “normais” podem aprender a conviver em uma sociedade mais justa, que aceite as diferenças e, dessa forma a família não ficará tão sobrecarregada. Para isso, no entanto, é necessário que as mães inicialmente percebam que precisam dessa rede de apoio, muitas vezes o que vemos é que elas possuem medo de entregar seus filhos para outras pessoas cuidarem enquanto elas fazem alguma atividade. Vemos isso no nosso dia-a-dia, onde nos oferecemos para cuidar das crianças enquanto elas pintam ou escrevem sobre suas vidas, poucas sãos as que entregam a criança, preferem muitas vezes darem um jeitinho “aqui e acolá” para continuar com as crianças em seus colos.

Trabalhando em grupo...


Vínculos duradouros onde exista uma troca constante de afeto e ajuda, em que possam se comunicar, trocar ideias, essa é nossa ideia de grupo de apoio (ou suporte) (MELLO FILHO, 2007, p. 113) e nosso objetivo.
Inicialmente, o que chamávamos de grupo, não era na prática um grupo: as mães chegavam sentavam, as que sentavam próximas uma das outras conversavam, as que vinham juntas dentro do carro conversavam entre si, subgrupos e não um grupo era o que existia. Acontecia de terem mães novatas e elas nem se darem conta de haver uma novata na sala. Depois de dois anos, ainda vemos isso, nem todas sabem os nomes das mulheres que veem toda semana.
Primeiro, tivemos que trocar informações sobre suas vidas para que pudessem perceber o quanto elas possuem em suas vidas algo em comum, depois, tivemos que proporcionar momentos em que elas liberassem suas raivas e angústias. No grupo da segunda, ainda temos que proporcionar um estreitamento de vínculos. Para que a resultante possa ser “[...] um sentimento de coesão e de apoio que empresta ao grupo subsídios para o enfrentamento da realidade, agindo como fator moderador do estresse” (MELLO FILHO, 2007, p. 113) e além disso “[...] reforçar o self do indivíduo, elevando sua auto-estima e autoconfiança” (MELLO FILHO, 2007, p. 114).
O grupo também funciona como meio de catarse: em uma reunião em que as mães conversaram em duplas entre si para aprofundar os laços e se conhecerem mais, ocorreu que no fim, onde unimos todo o grupo, duas mães se reportaram a uma mãe que para elas era como se fosse um exemplo de dedicação e amor. A mãe exemplar chorou, pois para si era difícil falar sobre o seu filho, as outras duas também começaram a chorar. O grupo inteiro se emocionou e outros assuntos como dificuldades encontradas em seus lares surgiram e, entre si elas conseguiram encontrar ajudar e palavras de conforto e carinho que as ajudassem a levar as agruras do dia-a-dia.

Portanto, além de catarse, proporciona troca de informações, coisas que deram certo ou mesmo de atitudes e cuidado diante dos seus filhos: uma mãe, certa vez, deu o depoimento de que ela fazia massagem em sua criança, tocando cada parte do seu corpo com creme hidratante, que colocava seus pés descalços na areia e na cerâmica para que ele pudesse sentir a temperatura e a textura, que dava comida pastosa, mas de diferentes sabores para ele perceber os sabores. Atos simples, que poderia ser feito por qualquer uma delas e que seriam de grande valia para o tratamento de seus filhos e para o relacionamento que elas mantêm com eles.
Pouco a pouco elas vão se descobrindo, descobrindo que podem ser mais fortes em grupo, descobrindo que precisam dedicar-se a si mesmas.

Dificuldades e alegrias...

Como grupo não podemos nos colocar fora do grupo. Nós realizadores do projeto também temos sonhos e esperanças, além de medos.
Comecemos pelas dificuldades: como estudantes, os primeiros momentos de contato com o grupo são de ansiedade e medo do imprevisível: o que fazer quando as mães começarem a chorar? O que fazer quando o grupo não quiser participar? Com o tempo vamos aprendendo a questionar e dialogar com grupo, poder colocar as dificuldades encontradas na realização do trabalho pedir para que elas deem um feedback, afinal, é para elas todo esse trabalho, toda essa dedicação. Vamos aprendendo a lidar com a ansiedade nossa e delas, a ter outras ideias em mente para quando surgir o inesperado. Aprendemos a ser empáticas, a nos colocar no lugar dessas mães, compreender suas histórias e entender o porquê de cada medo e cada frase, sem esquecermos-nos do lugar em que estamos. Sem esquecer que às vezes, seremos como mães para elas, tendo que dar limites, mostrando a realidade, tendo que ser duras e dizer: “não, temos que repensar esse grupo e para isso precisamos de vocês, o que vocês querem?”; assim em vez de guiá-las por essa realidade especial, nos caminhamos com elas. As reuniões são uns encontros, como uma mãe já disse, isso aqui é um “SPA”.
                
Bem para ser SPA, precisamos de algumas detalhes e, aí entram em cena os sonhos: poder levar alguns cabeleireiros e maquiagem, para fazer uma tarde em que elas possam se reinventar e, possam ver o quanto elas podem ser bonitas, o quanto existe por trás daquela mascara de cansaço. O quanto ainda são jovens. Ou então, fazer uma viagem, para a praia, ou para uma piscina e poder proporcionar alguns momentos para elas e seus filhos, onde poderão estreitar os laços entre si e, verem que sim um passeio com uma criança especial pode ser possível. Trazer técnicos que lhes ensinem como massagear, sem machucar, como a Shantala para os bebês ou uma massagem fácil, para si próprias. Levar materiais diversos (como papeis coloridos, tintas, massa de modelar) para que elas possam através deles contar as dores com as quais não podem lidar verbalmente. E material para que possamos de formas mais lúdicas e interativas ensinar um pouco mais sobre a doença, já que às vezes os profissionais da área de saúde, preocupados com seus filhos, esquecem informações básicas, ou passam de forma muito técnica o que é cada doença, ou por receio e vergonha elas não perguntam e não sanam todas as suas dúvidas. Jogos, brincadeiras, amor, carinho e atenção, criatividade... Criatividade para transformar as dores, os medos e a ignorância.

A alegria chega quando os encontros são divertidos, quando elas falam e perguntam sobre si. A gratificação vem do encontro de indivíduos em um grupo. No último encontro, a atividade inicial proposta não pode ser realizada. Havíamos acabado de voltar das férias e fizemos uma viagem mental a praia para revitalizar as forças, risos e sorrisos, pelo inusitado e pelos pensamentos que ocorrem numa praia... Depois, o toque suave em uma massagem, interação e descanso... Compartilhamento... E alegria.

Considerações

 Dois anos... Parece menos... Parece pouco... Não é apenas as mães que precisam de apoio. Para que o trabalho possa ser feito e realizado de forma concreta é preciso buscar apoio de vários ordens: individual, financeira, institucional.
               
No entanto, mesmo com as dificuldades de lugar, horário, o entra e sai de gente, a falta de verba. É possível ter uma experiência eficiente, pois, existe dedicação e carinho. O profissional nesse espaço é imprescindível, constatamos esse fato o tempo todo, ao nos depararmos com essas mães. As reuniões ocorrem a cada 15 dias e em 15 dias muitas coisas podem ocorrer: uma criança pode adoecer e precisar ir pro Recife, voltar e ir de novo. E quando voltamos a encontrar a mãe, ela está em um misto de angústia, cansaço e felicidade: “meu filho ficará doente novamente? Estou cansada de tanto ir e vir. Que bom que meu filho melhorou”; e uma hora, nesses casos, mostra-se um tempo demasiado curto.

Como estudantes e futuros profissionais crescemos. É uma experiência que para a formação nos ajudou a manter a mente aberta e amadurecer mais rápido para a responsabilidade que é “escutar” uma pessoa.              Encontramos pedras e mais pedras no caminho, mas, para nós, as pedras se dissolvem quando escutamos “nunca mais tinham vindo, esqueceram-se de nós?” (informação verbal), “a gente aprende muito com vocês” (informação verbal). E no coração fica a certeza de que o trabalho é necessário, quando ao terminar um encontro em que as mães enfeitaram a sala para dar um colorido e vida em sua própria espera, escutamos: “O que seria da gente sem vocês aqui”?

Referências

BOWLBY, J.; Cuidados Maternos e saúde menta. 5° Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 239 (Psicologia e Pedagogia) 

MELLO FILHO, J. de; Grupo e corpo: psicoterapia de grupo com pacientes somáticos. 2° Ed., São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 404

NOLTE, D.; HARRIS, R; As crianças aprendem o que vivenciam. 28° Ed., São Paulo: Arx, 2005 p. 303 

WINNICOTT, D. W.; A família e o desenvolvimento individual. 3° Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 247 (Psicologia e Pedagogia) 

________; Conversando com os pais. 2° Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 152 (Psicologia e Pedagogia)



                                                                                               Rosario de Medeiros Dantas Câmara*
                                                                                                                  Jessyanne de Freitas Souza*
                                                                                                         Prof. Dr. Antonio Pereira filho**

 * Estudantes do 8º. Período do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências, Educação e Tecnologia de Garanhuns – Universidade de Pernambuco

** Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco