quarta-feira, 30 de março de 2016

Momento Poético: O Canário

O Canário
Aquiles Porto Alegre

Em um chalet pequeno e rendilhado,
tive um canário, há muito, prisioneiro;
era um pássaro alegre e endiabrado,
que não o dava a peso de dinheiro.

Quando as asas abria no poleiro,
soltava logo o mágico trinado;
e assim passava sempre o dia inteiro,
como se fosse um doido enamorado.

Uma vez, de manhã, o passarinho
espreita para a rua... Com carinho
dois pombos se beijavam no telhado.

Contra a gaiola investe, como um louco!
Geme, agoniza e morre pouco a pouco,
com o peito ferido e ensanguentado!...


  • FARACO, S.; Livro dos Bichos. Porto Alegre: L&PM, 1999, p.89

quarta-feira, 23 de março de 2016

Momento Poético: A Solha

A Solha*



Quando Nossa Senhora andava pelo mundo,
trazendo ao colo um deus, foi bater, certo dia,
à hora da preamar, a um rio muito fundo,
de barreira muito alva, e água muito sombria.

Era um risco passar. Mas a Virgem Maria,
ante o equóreo lençol todo em peixes fecundo,
quis saber, vendo perto uma solha vadia,
se o rio, na vazante, era feio e profundo.

E indagou: "Solha, dize, a maré enche ou vaza?"
Mas a solha, a zombar, por um hábito antigo,
torce a boca, e a arremeda, a pular na onda rasa.

E é daí, e em razão desse negro pecado,
que a solha começou, por severo castigo,
a rodar pelo mar, tendo a boca de um lado.


Humberto de Campos
§Miritiba - Maranhão, 1886

*Linguado

quarta-feira, 16 de março de 2016

Momento Poético: Júlio César Ato III - Cena I (fragmento)

Júlio César ( Ato III - Cena I [fragmento])

(A Morte di Cesare, 1805, de Vincenzo Camuccini)

Antônio: Oh poderoso César! Tão por baixo!
Todas as tuas glórias, as conquistas,
teus espólios e triunfos, a medida
tão pequena ficaram reduzidos?
Adeus! Não sei o que pensais, senhores,
sobre os que ainda devem perder sangue,
por ter sangue demais. Se achais preciso
que eu o derrame, hora não há melhor
do que esta em que deixou de viver César,
nem instrumento que em valor se iguale
ao de vossas espadas, ora ricas
do sangue mais precioso deste mundo.
Suplico-vos, no caso de me terdes
como suspeito, executai o intento
sem perda de um instante, enquanto as rubras
mãos ainda vos fumegam. Se eu vivesse 
mil anos, impossível fora achar-me
tão apto para morte como agora.
Nenhum lugar me agradaria tanto
para morrer, nem gênero de morte,
como junto de César, sendo eu morto
pelos maiores homens de nossa época.



(Shakespeare, W.; Tragédias: Teatro Completo; tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 205).

quinta-feira, 10 de março de 2016

Não aprendi dizer adeus

Dizer adeus atualmente é uma das coisas mais difíceis que temos que aprender a fazer, seja crianças ou adultos. A modernidade tornou os momentos de despedida um tabu tão grande que ninguém mais fala sobre ele. Vivemos como se não perdêssemos nada e não pudéssemos perder, por mais que convivamos com os mais diversos tipos de perda em nosso cotidiano. O não dito sobre as perdas faz com que cortejemo-las de forma sútil: falamos sobre elas nos jornais, nas músicas, nas histórias que contamos, nos medos que não compartilhamos, mas demonstramos com vários problemas de saúde e de apego.
 
Não nos é ensinado "dizer adeus" e quando chegamos frente a frente com o inevitável da morte - a perda que nunca terá volta em nossas vidas - ficamos meio que sem palavras, meio atordoados e tentamos evitar, segurando as lembranças do morto o máximo possível.

No entanto, é impossível continuar vivendo sem se despedir, sem abrir espaço para o novo. É preciso abandonar as lembranças e deixa-las em seu devido lugar de lembrança. É preciso abrir mão. Mas, como podemos fazer isso?

A música "não aprendi a dizer adeus" do compositor Joel Marques e imortalizada pela voz do cantor sertanejo Leonardo é uma música que nos faz refletir sobre o não saber dizer adeus e ter que dizer adeus. Ela parece ter sido escrita com o compositor ao pé de um caixão em um velório. Vejam bem se ela não imortaliza os sentimentos de despedida que antecedem o momento de enterro:


Não aprendi dizer adeus
Não sei se vou me acostumar 
Olhando assim nos olhos teus
Sei que vai ficar nos meus 
A marca desse olhar


Ouvindo a música mais atentamente é possível se imaginar em pé a um caixão, olhando pela última vez o rosto do ente querido, uma lembrança que para sempre ficará marcada na história. Os olhos que não mais brilham e respondem. Os olhos do vazio e do mistério da vida e da morte que sempre está a nos questionar como estamos vivendo.

Sutilmente, os sentimentos do ouvinte vão sendo levados para o inexplicável de perder um ente querido e ter que se despedir: "Não tenho nada pra dizer / Só o silêncio vai falar por mim".  É difícil encontrar as palavras para a despedida e, às vezes, realmente não há mais nada a se dizer.

O compositor pouco a pouco vai retratando a ideia de que está dor estará sempre com aquele que ainda vive e que ela necessita ser um tanto esquecida em prol do amor que foi construído durante a relação: "Eu sei guardar a minha dor / Apesar de tanto amor vai ser / Melhor assim". Ele fala já no fim da música sobre a aceitação da perda, apesar do amor e da dor. Ele traz um pouco de esperança de que por fim o tempo vai passar e as cicatrizes serão esquecidas:

Não aprendi dizer adeus mas
Tenho que aceitar que amores
Vem e vão são aves de Verão
Se tens que me deixar que seja
Então feliz
Não aprendi dizer adeus
Mas deixo você ir sem lágrimas
No olhar, se adeus me machucar
O inverno vai passar, e apaga a cicatriz

Esta música é uma dentre tantas outras que pode ser utilizada como estratégia de enfrentamento para enlutados. A sonoridade e a letra da música nos aproximam dos sentimentos que não conseguimos nomear e ajuda na reflexão que em certo grau todos passam pela mesma dor.

Não é tão difícil assim se despedir ou falar da morte se assim como crianças pudermos utilizar de formas lúdicas que não joguem tão "na lata" os nossos sentimentos. Quando não encontramos palavras para expressar a dor, podemos encontrar símbolos que exprimam a angústia e o sofrimento que corre por dentro. Podemos utilizar da arte para dar um novo significado a história que já não pode mais ser e encontrar uma nova história para contar. Fica a dica!

- Publicado originalmente no site da Agenda Saúde: http://www.agendasaude.net/2016/02/nao-aprendi-dizer-adeus.html

 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Mulher, mulher! Por que estás a lutar? - Uma Breve Reflexão

De ontem... no Agenda Saúde.


O dia Internacional da Mulher comemorado todo ano no dia 08 de março é basicamente um ato político de afirmação do direito da mulher, no entanto, apesar de toda a movimentação social que existe na época, tem se tornado uma data comercial, onde pequenas lembranças são entregues em prol da comemoração.

As lutas que deram origem ao dia ocorreram durante a primeira metade do século XX. Greves de operárias em busca de melhores condições de trabalho e uma igualdade de direitos perante o funcionário homem foram as chaves que legitimaram a revolução feminina e inseriram de vez as mulheres no mercado de trabalho. Os movimentos feministas continuam em busca da melhoria da qualidade de vida para diversas mulheres; nos últimos 20 anos, por exemplo, assistimos uma crescente luta contra a violência doméstica, seja verbal ou física, que infelizmente ainda cala e mata milhares de mulheres todos os anos. 

Em meio a todo este burburinho, me pego observando de longe e me pergunto se nesta busca "desenfreada" pela igualdade perante o sexo masculino,  não perdemos de vista também qual é o papel feminino nesta história toda? É muito simples: apesar das conquistas no mercado de trabalho, posições de chefia, salários igualitários (quase sempre), o que vemos na intimidade dos lares? Ainda são poucas as mulheres que ensinam seus filhos homens a ajudar em casa, lavando, passando, cozinhando. Ainda são poucas as mulheres que permitem ou conclamam seus maridos a ajudar nos afazeres domésticos. Ainda são muitas as mulheres que se submetem a três turnos de trabalho e dão conta de tudo em um mudo sacrifício de si mesmas. 

Na contra mão da evolução, cada vez mais percebo mulheres abdicando do seu lugar no mercado para encontrar um local no lar, cuidando de seus filhos, estando mais perto da família. Assim como, percebo mulheres entre seus 25 e 30 anos, investindo na carreira e preocupadas com o tic tac do relógio biológico e a pressão da sociedade para ela casar e ser mãe. Ou, quando não, estão esgotadas e cansadas, desgostosas da vida, pois dão tudo pelos outros e quase nada para si mesmas. Então, será que não está na hora de parar para pensar sobre os direitos por "Ser  Humano" que igualam as condições de trabalho, direito ao voto e tudo o mais, equilibrar novamente o masculino e o feminino buscando o complemento dos gêneros e uma vida psíquica mais saudável?


Creio que a igualdade está justamente em sermos diferentes e aprendermos a respeitar estas individualidades. Dessa forma, talvez não seja pelos direitos igualitários que devemos lutar, mas sim pelo respeito e o reconhecimento daquilo que nos faz ser quem somos. Só para pensar!

Publicado originalmente no site Agenda Saúde: http://www.agendasaude.net/2016/03/mulher-mulher-por-que-estas-lutar.html

Momento Poético: Eu Sou Mulher

Ainda em clima de comemoração pelo Dia Internacional da Mulher:

Eu Sou Mulher



Eu sou mulher
E sou espelho
Reflito os seus pesadelos
Reflito os seus anseios

Eu sou mulher
E se ferida
Na me dou por vencida
Com lágrimas nos olhos
Estanco a dor
E te perdôo
Pois sou mulher
Sou amor

Feiticeira
Donzela
Anciã
Cada qual uma estação
Cada qual uma lição

Sou mulher
E sou vida
Renasço das cinzas
Te dou apoio
Te dou o mundo
Te jogo no labirinto
Para aprenderes
Como viver
Como ser amor

Sou luz
Sou salvadora
Sou trevas
E quando sou escuridão
Sou infeliz
Por precisar
Ser o castigo
Por ter falhado
Em te ensinar
Do modo mais simples

Mas sou mulher
Sou vencedora
Sou guerreira
Se te ameaçam
Eu viro fera
E te protejo
Com minhas garras

Se me expulsas
Da tua vida
Permaneço nas sombras
Vigio os teus passos
Se caíres
Estenderei a mão
Se mesmo assim
Você me rejeitar
Do mesmo modo
Vou esperar

Um dia você irá entender
Que sou mulher
Por vencer
Por ser mulher
Que não desiste
Que não se cansa
E ama...
Apenas ama
É que sou mulher
Que revive
E te consola

Sou mulher
E sou luz
Por dar a luz
Estou em todas as faces
Em todos os lares
Sou mulher que consola
Que se redime
Que erra
Que ri
E que chora
Sou mulher
Que se seduz
Sou a mulher de todas as faces
Para todos os lares
Sou mulher
Que vive
E morre
Renasço do amor
E vivo em todas as faces
E estou em todos os lares

(Rosario Câmara; Concurso Internacional de Poesia Livre: Prêmio Celito Medeiros 2004, Organizado por Sol Vermelho. São Paulo: All Print Editora, 2004, p. 24)

quarta-feira, 2 de março de 2016

Momento Poético: Artistas em Oração

Artistas em Oração

Há tanta beleza nestes versos,
Neste fado que toca em tom dolente,
Que me vejo vibrando, de repente,
Nos fulgores sutis do Universo!

Vejo Deus aqui, em cada matiz,
Mergulho inteira nesta sinfonia,
Qual fragmento da grande "Matriz"
Que refulge luz, rima, melodia!

Que seria da vida sem a arte,
A forma mais sublime de oração,
Que agracia o "todo" e a "parte".

Junto-me a vós, em exortação,
Deixo aqui, a lágrima de quem parte,
Levando o pincel da comunhão,

Descalvado - SP
18:47
Brasil

(Fátima Irene; Concurso Internacional de Poesia Livre: Prêmio Celito Medeiros 2004, Organizado por Sol Vermelho. São Paulo: All Print Editora, 2004, p. 79)