Volto, pois, à questão: onde situar a psicanálise? [ ] A resposta pode
ser: em nenhum lugar preexistente. A psicanálise teria, nesse caso, operado uma
ruptura com o saber existente e produzido o seu próprio lugar.
Epistemologicamente, ela não se encontra em continuidade com saber algum,
apesar de arqueologicamente estar ligada a todo um conjunto de saberes sobre o
homem, que se formou a partir do século XIX.
(Garcia-Rosa, 2007, pág. 22)
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| Revolução Francesa |
O século XIX foi um século marcado por diversas revoluções e guerras. Nas décadas finais do século XVIII, a Europa encontrava-se em uma crise financeira devido as recentes secas e ao surto da febre tifoide. A crise política levou a Revolução Francesa (1789) e aos ideais iluministas, que se dispersaram por toda a Europa e encontraram em cada novo solo patriota uma forma própria de entender esses ideais. O espírito da Revolução e os novos ideias adentraram o século XIX, junto com a ameaça de dominação Napoleônica. Dentre os ideais iluministas a primazia da razão e o pensamento científico se firmavam cada vez mais como a única forma de compreender o mundo, assim a psiquiatria e a psicologia eram “ciências” recentes que tentavam ainda encontrar o seu lugar como ciência (Roudinesco, 2016; Birman, 2003).
Segundo Garcia-Roza (2007), as ciências do homem surge com o desenvolvimento do capitalismo “e sua exigência de controle dos corpos e dos desejos” (pág. 22). A virada do discurso da filosofia sobre o homem e seus desejos, advém da questão da subjetividade proposta por Descartes (XVII). A emergência da subjetividade, chama a atenção Garcia-Roza (2007), não é a emergência do sujeito, mas sim da consciência (cogito): “Em Descartes, o penso é ameaçado pelo eu” (pág. 15), e por isso, a Razão torna-se a principal via de acesso a verdade. Dessa forma, ciência (episteme) e razão (logos) encontram a mesma definição como possuidoras da verdade e reveladoras do ser e suas expressões pelo discurso (logos) [1]. As ideias de Descartes levaram a divisão entre a razão e a desrazão e assim surgiu a loucura (la folie):
[...] Literalmente, a loucura não existia, o que existia era a diferença
e o lugar da diferença. É apenas recorrentemente que podemos falar no louco
como um dos ocupantes desse espaço juntamente com a alcoólatra, o vagabundo, o
delinquente, o sifilítico ou o que restava dos leprosos. Antes do século XVII
não havia o louco como uma entidade diferenciada. O que se tem, nessa época, é
a consciência da diferença, mas de uma diferença que não era perfeitamente
delimitada, que não possuía um estatuto definido e que frequentemente era vista
como forma de suprema sabedoria para se perder em seguida no mistério da
diferença pura.
(Garcia-Roza, 2007, pág. 27)
Birman (2003) também aponta para a diferença no
entendimento da loucura e de sua etiologia existente na psiquiatria do “Antigo
Regime” e a psiquiatria surgida após a Revolução Francesa. Na primeira, a perda
da razão era incontornável, os loucos eram igualados aos dementes, não existia
faculdades intelectuais. Com a Revolução Francesa e as modificações que
ocorriam nos campos da ciência, a perturbação da razão passou a ser percebida
pelo delírio e a alienação torna-se o novo paradigma da loucura:
[...] Hegel identificou o seu projeto teórico com o da psiquiatria, justamente
porque a alienação mental não seria uma perda da razão, mas uma transformação
possível dessa, inscrevendo-se, portanto, de maneira constitutiva, no próprio
campo da racionalidade por aquele delineada. A loucura então, como alienação
mental, indicaria uma parada do movimento dialético do espírito, sendo a
terapêutica daquela a condição de possibilidade para a retomada do movimento
que fora paralisado. Pode-se dizer, enfim, que as ditas paixões excessivas,
aludidas por Esquirol, estariam no fundamento da estagnação do tal movimento
dialético, cuja consequência crucial seria a produção do delírio e da alienação
mental.
(Birman, 2003, pág. 20)
Compreende-se que em um primeiro tempo da psiquiatria após
a Revolução Francesa, o entendimento da etiologia da loucura estava no que
Garcia-Roza e Birman apontam como causalidade moral, os desvios das paixões e
requeriam que estas fossem domadas, novamente moralizadas, enquadradas nos
ditames da sociedade. Contudo, no decorrer do séc. XIX a biologia, a fisiologia
e anatomia tomam papel preponderante devido a necessidade de se encontrar um
substrato material para o entendimento da loucura e assim, a concretização do
sonho da psiquiatria como uma ciência natural separada da física e da medicina.
As teorias biológicas enfatizam a hereditariedade e a degenerescência como causadoras
da loucura.
Na Inglaterra, Henry Maudsley[2]
acreditava que o crescimento da civilização e a sua complexidade fazia com que
as pessoas enlouquecessem mais, devido ao aumento das funções mentais que
tinham que desempenhar. Para ele, civilizações menos especializadas, o que ele
chama de selvagens, possuem um cérebro menos complexo que não precisa lidar com
as dificuldades encontradas entre os seus desejos e as regras sociais, quando
ele quer algo ele apenas vai lá e se gratifica. Acreditava também que para não
enlouquecer as pessoas civilizadas precisavam ter um suporte emocional que os
permitisse não perder de vista os sonhos e os desejos ao se deparar com
frustrações que a própria vida impõe; entendia que pessoas que trabalham com o
coração são mais suscetíveis de ficarem loucas, do que os que trabalham com a
mente ou com as mãos, pois a paixão e os sentimentos que são colocados no
trabalho é o que causa os desarranjos mentais; a tuberculose também estaria
ligada a aparição de insanidade devido a uma predisposição latente, sua
sintomatologia seria a irritabilidade, obstinação e “conduta caprichosa” e
enfraquecimento do intelecto, pode apresentar mania e melancolia, além de ser
fantasioso; já a adolescência poderia levar indiretamente a insanidade por ser
a ocasião em que a pessoa poderia criar hábitos viciosos de maus tratos a si
mesmo: “o paciente fica agressivamente
egotista e impossível. Apresenta-se cheio de sentimentos autocentrados de
presunção. Insensível às reclamações de outros sobre ele e de seus deveres para
com estes outros” (Maudsley, 1879, apud
Dalgalarrondo, 2004, pág.22). A psicopatologia da mulher teria haver com a
atividade mensal dos ovários, nessa fase, elas ficariam suscetíveis, irritadas
e caprichosas e qualquer coisa poderia aborrecê-las mais do que o normal,
suprimir a menstruação ocasionaria a explosão direta da insanidade, no entanto,
ainda não seria possível dizer positivamente se o desarranjo mental estaria
ligado aos distúrbios da menstruação. “A
mania poderia ser um efeito mórbido simpático da excitação ovariana e uterina”
(Maudsley, 1879, apud Dalgalarrondo,
2004, pág.24). Na menopausa, aparecia ciúmes insanos e propensão para
estimulantes, principalmente quando não existirem filhos. A insanidade positiva
nas mulheres teria a forma de melancolia profunda. Maudsley salienta ainda a
insanidade puerperal e distingue-a em três doenças: durante a gravidez, após o
parto, e a que aparece meses depois durante a lactação. Na gravidez, a
insanidade seria do tipo melancólica e tendência suicida. Pode ocorrer demência
ou fraqueza mental, perversão moral e ânsia por estimulantes, exibição
exagerada dos desejos fantasiosos. O tratamento que teria sucesso seria a
retirada da grávida de sua casa. Já a insanidade puerperal, ocorre até um mês
depois do parto: as que ocorrem antes do 16º do parto possuem sintomas de mania
aguda, depois do 16º do parto os sintomas são de melancolia, além de uma
mistura de infantilidade e demência. A mania seria mais fácil de curar do que a
melancolia; a insanidade histérica seria uma variedade especial com crises de
mania, agitação, conversa rápida e desconexa, mas não incoerente, e com
conteúdos eróticos e obscenos, perda de vontade, a paciente pode tornar-se
fantasiosa a respeito de sua saúde, crises de raiva no período menstrual, os
cuidados deveriam ser a partir da retirada das simpatias e atenções ansiosas e o
controle moral; A ninfomania seria também uma doença encontrada na mulher
devido a irritação dos ovários ou do útero, onde uma mulher “casta e decente é
transformada numa fúria enraivecida de lascívia” (Maudsley, 1879, apud Dalgalarrondo, 2004, pág.28).
V. Magnam [3](1893)
faz um trabalho sobre o delírio crônico e sua relação com as doenças mentais.
Ele diferencia os delírios em: crônicos e sistematizados. Nessa época já se
falavam sobre os delírios de perseguição e de megalomania. Além disso,
acreditava-se nos hereditários degenerados que eram divididos em quatro grupos
de acordo com o desenvolvimento das faculdades intelectuais: os idiotas, vida
cerebral quase nula; imbecis, podem ser educados mas são incapazes de tecer
julgamentos e juízos morais, a inteligência é rudimentar; os débeis, conseguem
desenvolver a inteligência em determinadas condições; os desequilibrados ou
degenerados superiores, possuem faculdades brilhantes, mas existem lacunas
intelectuais e morais. Os quatros grupos possuem estigmas físicos, mal
formações, da degenerescência. Apresentam obsessões, impulsos irresistíveis
(manias, tais como a dipsomania, onomatomania, coprolalia, cleptomania e
anomalia sexuais, dentre outros), que são considerados estigmas psíquicos.
Nesses casos os delírios sistematizados possuem características especiais:
começa de repente, é sempre polimorfo, são casuais de longa ou curta duração;
eles também podem apresentar características obsessivas. Já os delírios
crônicos formam um grupo diferente de doentes, esses apresentam alucinações, se
sentem perseguidos e são ambiciosos e por fim se encaminham a demência. Para
Magnam, esse último grupo seria possuidor de uma psicose com etapas sucessivas
de incubação, perseguição, ambição e demência e se chamaria de delírio crônico
de evolução sistemática. Segundo Ana Maria Oda (in Dalgalarrondo, 2004), Magnam
estudou o alcoolismo por julgar ser a maior causa fornecedora de pacientes para
os hospícios e a partir desses estudos ele avançou na construção teórica da
loucura de uma forma geral. Ela acrescenta que a degeneração ou degenerescência
era considerada como a etiologia da loucura por psiquiatras das escolas
francesas, alemães e italianas; a degenerescência poderia ser hereditária ou
adquirida e todo degenerado seria louco, mas nem todo louco era degenerado.
Philippe Chaslin (1895) estudou a confusão mental
primitiva idiopática, que possui um período de incubação e um gatilho estressor,
que ocasiona modificações no corpo e no espírito, ao mesmo tempo. Os sintomas,
no período de incubação, vão desde dores de cabeça, à vertigens, dores
erráticas, cansaços, sensações bizarras e inexplicáveis, o apetite e o sono são
perturbados, e apresentam humor deprimido. O doente pressente que está
adoecendo e que poderá vir a enlouquecer. No início da doença propriamente
dita, o doente já se encontra incoerente e é marcado por uma excitação
generalizada, que pode confundir-se com um estado maníaco ou melancólico. Pode
ocorrer ainda catatonia, delírios ou alucinações e ilusões. Na forma completa,
ou mediana, o paciente apresenta “ar obtuso, idiota e estúpido, inerte e
embrutecido, o olhar vazio e sem expressão, a face pálida, lívida como a de um
doente verdadeiro” (Chaslin, 1895, apud
Dalgalarrondo, 2004), a higiene encontra-se comprometida e muitas vezes o
equilíbrio da marcha, possui atos incoerentes, movimentos estereotipados e
automáticos, podem ter haver com as palavras e ideias que o paciente exprime,
que são índices de suas alucinações e/ou ilusões. Essa confusão mental ocorre
paralelamente aos transtornos somáticos apresentados na fase de incubação.
Dalgalarrondo enfatiza que a importância do trabalho de Chaslin se deve a
delimitação e descrição exclusiva das entidades clínicas, sem teorizações a
cerca da patologia. O que Chaslin descreve é o que hoje chamamos de “delirium” e que faz parte das alterações
básicas e primárias da consciência: o seu rebaixamento.
P. Sérieux e J. Capgras (1909, apud Dalgalarrondo, 2004) estudam as loucuras racionantes, ou
delírios de interpretação, eles afirmam que durante muito tempo os delírios
sistematizados ou paranoia são estudados como estados psicopáticos divididos de
acordo com sua natureza em delírios de perseguição, de grandeza, de ciúmes, místicos,
eróticos, hipocondríacos e etc., e que faziam parte das psicoses, no entanto,
eles deveriam ser considerados manifestações mórbidas que poderiam aparecer no
decorrer de diversas doenças mentais. Além disso decorrem sobre as diferenças
das psicoses adquiridas, constitucionais e crônicas. Ana Maria Oda (apud Dalgalarrondo, 2004) comenta que
estes dois franceses tiveram seus nomes associados ao delírio de interpretação
e à síndrome de ilusão dos sósias, ou síndrome de Capgras. Eles acreditavam que
poderiam encontrar a origem da predisposição psicopática na teoria da degenerescência.
Além disso é a partir do século XIX que começa a se diferenciar o delírio, das
ilusões e das alucinações.
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| Phillipe Pinel |
Birman (2003) chama a atenção para o fato de tanto na
psiquiatria como na psicologia do séc. XIX o papel central ocupado pela
consciência. Seja como local da razão, ou como faculdade mental, a consciência
era o local onde o “eu” e a subjetividade estavam inscritos: “Pretendia-se,
pois, explicitar não apenas como funcionava o pensamento, mas também enunciar
quais seriam os seus pressupostos formais e materiais. Isso porque a certeza da
existência do eu circulava sempre e apenas em torno do pensamento” (Birman,
2003, pág. 22). Dessa forma, o estudo da loucura colocava um impasse teórico
visto que o que ela apresentava de mais fundamental era a existência das
alucinações e delírios, que em um estado normal, se compararia as fantasias e
aos sonhos. A loucura era sempre colocada na negatividade e nela não existiria
subjetividade, o que fez com que a psiquiatria e a psicologia precisassem
sempre se referir à oposição verdadeiro/falso para entender as perturbações do
espírito.
Ressalta-se ainda a informação de que está é a história da
loucura no mundo ocidental. Como terá sido este desenvolvimento no oriente?
Referências Bibliográficas:
·
DALGALARRONDO, P.; ODA, A. M. G. R.; e, SONENREICH,
C. – História da Psicopatologia: textos originais de grandes autores. São Paulo: Lemos Editorial, 2004.
·
ROUDINESCO, E; e, PLON, M. – Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
·
GARCIA-ROZA, L. A.; Freud e o inconsciente. 22º ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
·
ROUDINESCO, E.; Sigmund Freud na sua época e em
nosso tempo. 1º ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 2016 (Transmissão da Psicanálise).
·
BIRMAN, J.;
Freud
e a filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 (Passo-a-passo;27).
Recomendação de leitura:
·
LOPES, J. L. - A psiquiatria na época de Freud: evolução do conceito de psicose em
psiquiatria. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo , v.
23, n. 1, p. 28-33, Mar. 2001. Internet. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462001000100007&lng=en&nrm=iso>.
Acessado em 1 de abril de 2018.
[1]
Logos em grego significa razão e discurso.
[2]
Henry Maudsley foi um dos principais alienistas da Inglaterra no século XIX.
[3]
Alienista francês.









