"Tudo que morre fica vivo na lembrança
Como é difícil viver carregando um cemitério na cabeça"
A morte é
algo peculiar. Uma realidade que o cérebro humano não consegue processar.
Imaginar o nada absoluto é algo que tentamos observar, é algo que entendemos
filosoficamente, mas muito difícil de atingir realmente a meta. O vazio, aquela
sensação a qual não conseguimos nomear e vamos procurando as bordas, os
limites, só consegue ser exemplificada pela analogia da escuridão e mesmo
assim, a escuridão é apenas a ausência da luz, ao se colocar luz, voilà,
tudo é visível, tudo! Não existe mais o nada!
É
interessante observar que até termos a necessidade ou o encontro com a perda ou
a morte, não atinamos para a quantidade de músicas, filmes, obras de artes que
nos remetem a este momento inevitável na vida de todo ser humano. A música “Impossível”
da banda Biquini Cavadão fala justamente deste momento de perda, quer seja ela
por um rompimento amoroso, ou por uma morte. O fator “x” é a elaboração dessa
perda.
Na
sociedade atual, muitos vivem como fala a música: carregando cemitérios na
cabeça. Ou seja, a vida em si está tomada por lembranças de perda e sentimentos
que não são elaborados e dessa forma compreendidos. A meu ver, este “não
falar” coloca o sujeito em três posições distintas: aquele que sempre sente
a dor da perda e a vive com um looping no espaço temporal, dando voltas
e voltas tentando entender o que houve, o que Freud em seu artigo “luto e
melancolia” ([1915] 1917) chamaria de melancólico; aquele que por medo de
sofrer novamente, fecha-se em si mesmo e deixa de experienciar novas relações;
e, por fim, aquele que prefere ignorar e passar por cima dos próprios
sentimentos, vivendo como se nada tivesse acontecido. No fim das contas,
aqueles que não cuidam de suas dores, de suas emoções, acabam adoecendo
psicologicamente e/ou emocionalmente, cedo ou tarde.
A pouca
experiência clínica que tenho indica que muitos daqueles que estão sofrendo,
que estão tristes e não sabem por que, que recebem o diagnóstico de depressão,
trazem lutos não elaborados, carregam “cemitérios na cabeça”, de perdas por
morte real ou por relacionamentos, oportunidades, sonhos...
Quando
perdemos algo ou alguém perdemos também uma parte de nós mesmos. Parte esta que
viveu e aprendeu na interação com o objeto perdido. Não nos damos conta da
quantidade de perdas que acumulamos durante a vida, não percebemos que viver
significa aprender a lidar com a perda, com o não ter.
"E
não podemos evitar que a vida trabalhe com o seu relógio invisível
Tirando o
tempo de tudo que é perecível.
...
É
impossível, é impossível esquecer você
É
impossível esquecer o que vivi
É
impossível esquecer, o que senti"
A dor do
“impossível esquecer” é imensurável e cada sujeito conhece e, apenas ele,
conhece o tamanho da dor que sente. Não tem como comparar, como modificar os
acontecimentos que levaram à perda. É impossível esquecer, porque a relação
está inscrita na história de vida do sujeito e dessa maneira ela é parte dele.
Somos uma colcha de retalhos, somos feitos da interação que construímos com o
mundo a nossa volta. E a dor da perda não pode ser esquecida, ela pode ser
amenizada, ela pode ser transformada.
“Mas
antes que eu me esqueça, antes que tudo se acabe
Eu preciso,
eu preciso, dizer a verdade”
Aqueles
que se permitem dizer a verdade, delimitam o vazio que não conseguimos nomear,
escrevem suas próprias cosmogêneses e renascem das cinzas daquilo que foram com
aquele que foi perdido.
“Mas eu
sei que no coração ficaram muitas palavras
Um
vocabulário inteiro de ilusão”
(Impossível
- Biquini Cavadão)
Ao dar
vazão ao “vocabulário inteiro de ilusão”, despedem-se dos sonhos que teceram
sobre a relação e o seu futuro. Quando o morto deixa de estar no pedestal da
santificação por ter falecido; quando ele deixa de estar no lugar de todo o mal
que foi erradicado; quando ele passa a ser mais um aprendizado na vida dos que
ficaram, estes últimos podem dar prosseguimento ao seu processo de crescimento,
pois eles deixam de querer e ter, passam a aceitar que nunca terão o total
controle de suas vidas. Eles passam a “Ser”, simplesmente “Ser”.
A música "Impossível" realmente foi escrita falando sobre a morte, no entanto, muitas vezes é utilizada e compreendida como balada romântica.
Referências:
- BIQUINI CAVADÃO; Impossível (1991). Produzido por: Carlos Beni. Gravadora: Polygram, 1991.
- FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917 [1915]. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 243-263. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).
- SILVA, P. J. C. da; Lembrar para esquecer: a memória da dor no luto e na consolação. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 711-720, dezembro 2011
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